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até que ponto o SNS garante apoio às famílias?

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A tendência de envelhecimento da população, o aumento da prevalência de doenças oncológicas, circulatórias ou doença vascular cerebral têm vindo a aumentar a pressão sobre os cuidados continuados e paliativos em Portugal.

Num SNS já suficientemente sobrecarregado impõe-se a necessidade de acompanhar “esta área de prestação de cuidados de saúde”, como sublinha o relatório de monitorização da Rede Nacional de Cuidados Paliativos.

Em 2023, quase metade (48%) dos doentes referenciados para unidades de cuidados paliativos contratualizadas com o setor privado ou social morreram antes de ter vaga e 12% residiam a mais de uma hora de viagem da Unidade de Internamento de Cuidados Paliativos (UCP-RNCCI) em que se encontravam internados.

Um raio-X aos cuidados paliativos em Portugal

Os profissionais de saúde queixam-se do pouco investimento nesta área, tanto a nível financeiro quanto no que diz respeito à valorização da carreira dos médicos e enfermeiros que se dedicam aos cuidados de doentes em fim de vida. A ‘manta’ não estica para todos e só chega a quem tem o “código postal” certo, algo “desumano e injusto” para a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.

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Há casos de doentes que, para ter acesso às equipas comunitárias de cuidados paliativos, com todo o apoio de que precisam na fase final da vida, acabam por mudar-se para casa de familiares ou amigos para que consigam ter uma morte digna, junto dos que amam e longe do ambiente frio de um quarto de hospital repleto de luz, barulhos de máquinas e a azáfama que existe para dar resposta a situações agudas.

Paulo Faria Sousa, coordenador da equipa comunitária de cuidados paliativos da Unidade Local de Saúde (ULS) de Amadora/Sintra, relata isso mesmo:

A Federação Nacional dos Médicos (FNAM) alega que as equipas de paliativos enfrentam condições de trabalho indignas e desigualdade perante outros profissionais de saúde, uma posição assumida na sequência de uma carta aberta de profissionais das equipas comunitárias de suporte de cuidados paliativos (ECSCP), enviada ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, e à ministra da Saúde, Ana Paula Martins.

Quando se quer morrer em casa, o SNS dá resposta?

A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (2012) e o Decreto-Lei 52/2022 (novo Estatuto do SNS) consagram os Cuidados Paliativos como um direito dos cidadãos e integram-nos numa rede chamada Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP) que apesar da intenção de chegar a todos, não chega a mais de metade da população.

Entre 2021 e 2023, a região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo concentrava 77% da oferta total de camas em Unidades de Internamento de Cuidados Paliativos. Neste sentido, o “domicílio pode ser uma resposta” não só para que todos tenham solução, como também para aqueles que escolhem morrer no conforto da sua casa.

Mas como?

Tânia Varela, coordenadora da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos da ULS de Lisboa Ocidental de Cascais e impulsionadora da carta aberta enviada ao Governo, garante que os cuidados paliativos em casa “podem ser uma alternativa à institucionalização” de doentes em fim de vida, mas ainda há um longo caminho a percorrer.

Desde logo pela diminuição da capacidade desta resposta face ao “desfalque das equipas do ponto de vista dos recursos humanos”.

“De há alguns anos para cá que notamos que isso acontece, sobretudo desde 2024, (…) as condições de trabalho são muito diferentes e começou a haver um descontentamento dos profissionais”, dá conta a profissional.

Esta fuga de médicos e enfermeiros está a causar um esvaziamento das equipas comunitárias de cuidados paliativos que, consequentemente, “dão menos resposta a menos doentes”.

Joana Bordalo e Sá, da FNAM, sustenta esta ideia acrescentando que “quando a família manifesta o desejo do doente falecer em casa” de forma digna “a verdade é que há muito poucos recursos” para o fazer.

“Na prática, as famílias deparam-se com equipas que são insuficientes, às vezes inexistentes, dependendo da zona geográfica, e os nossos dados confirmam isso”, afirma.

A médica oncologista lembra o “Questionário aos Médicos que Trabalham em Cuidados Paliativos em Portugal” cujos resultados, lamenta, “são absolutamente desoladores e assustadores”.

“Há uma degradação das condições de trabalho e uma sobrecarga enorme”, aponta.

A presidente da FNAM explica que “os médicos que decidem abraçar esta área, têm imensa dificuldade na progressão da carreira”, acabando este por ser um fator pouco atrativo para profissionais.

Esta questão é também sublinhada por Tânia Varela que afirma que “é muito difícil hoje em dia atrair, por exemplo, um interno, um recém-especialista de medicina geral e familiar para vir trabalhar para uma equipa comunitária”. Isto porque “para além da formação em medicina geral e familiar, para alguém trabalhar numa equipa comunitária tem de ter formação específica em cuidados paliativos” e esta não é uma especialidade de medicina em Portugal.

“Somos uma competência da Ordem dos Médicos. E para ter essa competência precisamos não só de formação teórica, mas também prática. E isso é um grande investimento pessoal”, explica.

E as necessidades são notórias: “Neste momento somos aproximadamente 33 [equipas comunitárias] no país, o que se previa era que 50 e poucas equipas conseguissem dar resposta à população inteira, equipas bem dotadas, com a dotação necessária.”

Catarina Pazes, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, explica que as equipas “estão muito aquém das necessidades” e, na grande maioria dos contextos, “não dispõem dos recursos mínimos para funcionar com a qualidade desejada” além de “não existir ainda cobertura de 24h/7 dias por semana [como propunha o Modelo Organizacional dos Cuidados Paliativos nas ULS], o que significa que muitas famílias ficam sem apoio em momentos críticos, sobretudo durante a noite”.

Também Cândida Silva, coordenadora da equipa domiciliária de cuidados paliativos do IPO do Porto, refere a falta de recursos humanos suficientes para dar resposta a todos os que destes cuidados necessitam. A sua “micro-equipa”, composta por um médico e um enfermeiro em permanência faz o melhor que pode para dar resposta aos doentes oncológicos do IPO do Porto naquele àrea geográfica. Quando não é possível, é feita a referenciação para as equipas comunitárias que “ficam aquém das necessidades existentes”.

“Muitas vezes não chegam para os pedidos que têm”, aponta. O IPO do Porto tem um serviço de cuidados paliativos que dá resposta à população oncológica adulta (embora exista também um serviço dedicado à pediatria) que é aqui seguida, sendo a resposta domiciliária limitada, à semelhança do que existe em Lisboa.

Apesar das limitações, Cândida Silva afirma que dão uma “boa resposta” às necessidades existentes e que tentam “preparar a família e antecipar vários cenários” antes da morte do doente. Depois o acompanhamento mantém-se no luto adaptando a resposta caso a caso.

A falta de avanços, investimento e os obstáculos para os médicos

O Modelo Organizacional dos Cuidados Paliativos nas ULS proposto pelo SNS em 2023 pelo SNS incluía o objetivo de alargamento da assistência a 24 horas por dia, mas, de lá para cá, não houve avanços nesse sentido. As equipas denunciam até que em vez de se melhorar esta área, a mesma encontra-se estagnada ou até pior

“Não houve nenhum avanço, não há avanços. O problema, na nossa perspetiva, agravou-se em todos os aspetos do Serviço Nacional de Saúde”, sublinha Joana Bordalo e Sá.

Catarina Pazes acrescenta que “avançou-se em propostas verbalizadas, mas no concreto e no terreno mantemos a não cobertura efetiva e equitativa dos serviços”.

Também Tânia Varela reitera a mesma ideia: “Infelizmente [estamos muito longe de alcançar isso], cada vez temos equipas a reduzirem mais o horário de trabalho. Mesmo aquelas que tinham, por exemplo, um horário em que podiam fazer uma prevenção, portanto, estar ao telefone e darem alguma resposta telefónica a estas famílias num período mais alargado, até às 20h ou mesmo até às 22h, hoje em dia começam a reduzir, exatamente porque não têm os profissionais suficientes para dar essa resposta e ao fim de semana a mesma coisa.”

Uma família que apenas esteja dependente do SNS, fica sozinho fora do horário de funcionamento destas equipas. Mesmo que os profissionais possam alargar a sua disponibilidade em casos identificados como mais críticos, fora deste horário, ou seja, durante a noite ou aos fins de semana, doentes e cuidadores ficam à sua sorte, sem sequer terem uma linha telefónica ou algum profissional a quem possam recorrer. Nessas situações, a única solução é mesmo o hospital para controlo da dor ou de alguma descompensação do doente que, com a ajuda adequada de uma equipa comunitária, poderia resolver-se em casa.

Joana Bordalo e Sá acrescenta que “há uma ausência total de investimento sério por parte deste governo de Luís Montenegro” e que “há uma falta de investimento generalizado no nosso SNS e dentro do SNS, nesta área em particular”.

A impotência e a falta de escolha

O sentimento é mesmo de impotência. Paulo Faria Sousa e Catarina Pazes assumem essa dificuldade, tanto para os profissionais quanto para os doentes e família.

“Às vezes acontece que nós não conseguimos chegar a tempo e as pessoas acabam de reforçar antes de nós conseguirmos entrar naquela casa e dar esse apoio. Portanto existe aqui uma limitação de recursos humanos e nós profissionais fazemos um esforço grande para tentar chegar a todo lado, mas também reconhecemos que não é possível”, lamenta o coordenador da equipa comunitária da ULS da Amadora/Sintra

Catarina Pazes relata a impotência “face àquela situação e a incapacidade de resposta e de cuidar em casa de alguém que é querido, que queremos ter perto de nós, mas que sem suporte e sem apoio não é possível”.

Quem queira passar a última etapa da sua vida em casa, junto dos seus, pode não ver o desejo realizado caso não exista uma equipa comunitária que cubra o local onde vive.

“Não há muita escolha. Alguém que queira estar em casa e que não tenha o apoio de uma equipa comunitária, ou tem realmente a sorte de ter uma situação clínica e uma estabilidade familiar muito tranquila e que se calhar com alguma ajuda de profissionais, equipa de saúde familiar e assim, conseguem controlar as coisas. Mas se é preciso uma intervenção mais robusta, se existem sintomas mais descontrolados, a escolha passa a ser ou estar em casa a sofrer ou ir para o hospital”, afirma Paulo Faria Sousa.

O que resta acaba mesmo por ser os internamentos hospitalares, os serviços de urgência que “normalmente não coincide com a preferência das pessoas”, sublinha Tânia Varela.

Joana Bordalo e Sá salienta que muitas vezes só é possível “dar este acompanhamento mesmo na fase final e na fase terminal”.

“O que nós entendemos é que os doentes paliativos, ou que mereceriam cuidados paliativos, têm direito a ter cuidados paliativos dignos e, sobretudo, têm direito a ter uma morte digna. E com esta escassez de meios é muito difícil”, acrescenta Joana Bordalo e Sá, da FNAM, acusando o Governo e o Ministério da Saúde de “falhar gravemente aos doentes”.

As dificuldades de quem vive para ajudar

Quem ‘veste a camisola’ e escolhe os cuidados paliativos como missão de vida, enfrenta não só as dificuldades laborais já relatadas, como também a experiência de dar o melhor cuidado possível aos seus doentes, o que nem sempre é possível em termos de recursos humanos.

Além disso, os doentes não são apenas idosos, como refere Paulo Faria Sousa. Vão “dos 0 aos 100 anos” e, por vezes, é ‘complicado’ para os profissionais do ponto de vista emocional.

A ligação com os doentes e família é inevitável uma vez que os cuidados são feitos de forma muito individualizada. É preciso conhecer o doente, o seu historial clínico, contexto familiar, e o que o envolve para o poder ajudar da melhor forma.

Esta sexta-feira, dia 10 de outubro, celebra-se o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos Pediátricos. Como já referido, embora em muito menor percentagem, há crianças que também precisam desses cuidados e em que o estar em casa se torna muito mais confortável, mas nem sempre possível.

Joana Rodrigues, enfermeira na empresa Humanize, que presta cuidados paliativos fora do SNS, afirma que, apesar de “felizmente, em pediatria a proporção ser muito menor”, na verdade, o que se vê é que, na sua perspectiva, “a grande maioria dos doentes pediátricos acabam por estar em hospital, porque não há suporte depois para estarem em casa”.

“Nem todas as equipas da comunidade conseguem abarcar doentes pediátricos, porque é preciso uma especialização maior”, afirma.

Quanto aos mais velhos, Catarina Pazes acrescenta que “as equipas comunitárias que suportem cuidados paliativos não se deslocam apenas ao domicílio, mas também se deslocam às estruturas como os lares de idosos ou unidades de cuidados continuados”, sendo por isso fundamentais.

Quando o privado é a única solução

Quando o SNS não dá resposta, seja porque é inexistente na morada do utente ou porque as limitações de equipas e horários não permitem um acompanhamento permanente, há uma outra solução que, apesar de não estar ao alcance de todos, pode ser uma saída.

Existem em Portugal equipas de cuidados paliativos privadas que, em conjunto com as equipas médicas da comunidade, podem ser uma tábua de salvação.

Paula Caetano, enfermeira desde 1986, decidiu abandonar a função pública e criar, em 2010, a Humanize, uma empresa privada que garante cuidados de saúde ao domicílio 24 horas por dia no distrito de Lisboa. Ao seu lado tem, desde 2016, Joana Rodrigues, coordenadora e enfermeira na empresa.

Enfermeira há quase 40 anos, Paula defende que os “cuidados de um doente nesta área, sendo assegurados em casa” trazem “muitos benefícios e menos custos aos hospitais” porque “a maior parte dos doentes – não todos, porque há outros que preferem estar institucionalizados – estão no seu meio, na sua casa, junto dos seus familiares, dos amigos – e como isto é uma parte da vida que não se repete, tem que correr tudo bem à primeira”.

Paula Caetano acredita que a Humanize acaba por preencher a lacuna existente no SNS.

Para Joana Rodrigues, o privado não é “a única solução”, mas “faz parte da solução”.

“A grande maioria das vezes o SNS não consegue dar a resposta toda, mas consegue dar uma resposta ajustada com algum tipo de suporte, que é aquilo que na verdade a Humanize faz. Diretamente em contato com a equipa do Serviço Nacional de Saúde ou com a família, acabamos por arranjar uma solução integrada”, explica.

No entanto, este tipo de serviço tem custos e nem todos têm acesso a ele, poucas ou “muito poucas” famílias podem recorrer ao privado.

“Esses serviços são muito onerosos e, portanto, as famílias nesta situação muitas vezes já têm não só perdas de rendimentos, mas também muitas despesas. Muitas vezes tiveram que deixar de trabalhar para estar a cuidar dos seus familiares e, acima disso, ter mais uma despesa para ter esse apoio é difícil”, descreve Paulo Faria Sousa.

Além disso, afirma que “não há muitas empresas, muitas entidades privadas a oferecer apoio 24 horas em cuidados paliativos”.

Paula Caetano garante que, na Humanize, tentam primeiro encontrar soluções na comunidade e só depois prestar o apoio que for necessário, adaptando-o a cada caso. Garante que “o esforço financeiro que a família e o doente fazem tem que ser reduzido ao mínimo” para que se possa manter a continuidade dos cuidados uma vez que há cada vez mais famílias com dificuldades.

“Às vezes é um bocadinho mais pesado financeiramente, outras vezes nem tanto. Depois também depende do suporte familiar que existe em cada seio”, acrescenta Joana Rodrigues.

Paula Caetano explica ainda que também no privado – à semelhança do SNS – existe dificuldade em ter enfermeiros suficientes, até porque muitos preferem emigrar face às condições existentes em Portugal. Mas garante: os que existem, são muito bons, “mas não conseguem chegar a toda a gente”.

“Depois existe a chamada lista de espera, mas uma lista de espera num doente que está em regime de cuidados paliativos, não faz sentido, porque não pode [esperar], não há espera”, conclui.

Como mudar?

A resposta é unânime. Todos os profissionais contactados pela SIC, do público ao privado, concordam com a necessidade urgente de criar medidas ou condições para atrair mais profissionais para os cuidados paliativos e melhorar esta resposta.

Essas condições passam por “investir em estruturas físicas adequadas e assegurar cobertura telefónica na comunidade de 24h/7 dias”, eliminar barreiras para médicos e enfermeiros que se queiram dedicar a esta área ou criar uma especialidade que garanta progressão de carreira.

No fundo, a ideia principal é tornar esta área da medicina mais apelativa para que os cuidados paliativos cheguem a todos – independentemente do código postal e possam chegar a quem queira morrer em casa.

Os benefícios são não só sociais, para as famílias e doentes, mas também do ponto de vista dos hospitais públicos com muitos doentes para poucos médicos. Os doentes nesta fase de vida, quando não têm acesso a equipas comunitárias, acabam por – direta ou indiretamente – ter de recorrer aos hospitais (internamentos e urgências) quando poderiam ser cuidados no conforto das suas casas.

“A cima de tudo é importante pensarmos que, ao estarmos a pôr recursos nos cuidados paliativos, nós não estamos a tirá-los a outro sítio, porque também estamos a tirar estas pessoas desses contextos, onde elas estão pior. Portanto, na verdade, nós estamos a adequar a nossa resposta àquilo que as pessoas precisam”, sublinha Paulo Faria Sousa.

A SIC contactou a Direção Executiva do SNS com várias perguntas relativamente aos cuidados paliativos e à ausência de avanço na proposta do Modelo Organizacional dos Cuidados Paliativos nas ULS, no entanto, não obteve qualquer resposta até à publicação deste artigo.


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