
Apadrinhamento civil é para crianças “de todas as idades” e “para a vida toda”
O que é o apadrinhamento civil? Quem pode candidatar-se e a quem se destina? O tema está em destaque no episódio 8 do podcast Vidas Invisíveis, da Renascença, sobre a realidade do acolhimento de crianças e jovens em Risco. Sofia Marques, especialista em Direito de Menores e coordenadora do Serviço de Proteção e Cuidado dos Jesuítas em Portugal, explica que este é um vínculo que fica “para toda a vida”, quase sempre complementar à família biológica.
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“O apadrinhamento civil é uma medida tutelar cível, que não serve exatamente para a proteção de uma criança – para isso existem as medidas de promoção e proteção -, mas é uma medida que serve para regularizar a situação jurídica de uma criança integrada numa família para toda a vida. É um vínculo que a lei equipara a um vínculo familiar, embora não se possa comparar nem com uma filiação nem com uma adoção. Os padrinhos exercem sobre a criança as responsabilidades parentais, sabendo que existe uma família – a família de origem -, que não tem condições para criar a criança de uma forma permanente, responsável e segura”, refere Sofia Marques, esclarecendo que em relação a outras medidas, como a adoção, a principal diferença é que não implica um corte com a família de origem.
“Quando se decreta uma situação de adotabilidade, o que se permite é que a criança mude também a sua identidade – não a sua história de vida, obviamente, mas o seu registo de origem é eliminado e passa a integrar uma nova família. Pela adoção constitui-se um novo vínculo, não uma filiação natural, mas através da adoção nós dizemos muitas vezes que a criança perde o que tem, perde a sua família e ganha uma nova. No caso do apadrinhamento civil sentimos que é uma soma. A criança precisa de ser integrada num agregado familiar para a vida toda, como se fosse a sua família de origem, mas não tem de perder os vínculos que existiam, sejam eles mais saudáveis, mais seguros ou menos, com a sua família de origem.”
E quem pode desencadear o processo? “A lei prevê que os próprios miúdos com mais de 12 anos possam ser eles a ter a iniciativa de pedir a Tribunal para que determinada pessoa seja nomeada seu padrinho/madrinha. Não conheço os números, mas imagino que seja estatisticamente pouco relevante esta iniciativa partir da própria criança. Mas podem ser os pais, pode ser o Ministério Público, pode ser o diretor de uma casa de acolhimento a propor isso”.
Sofia Marques adianta que, para se ser madrinha ou padrinho civil, “não é preciso ser casado”, mas “tem de se ter mais de 25 anos, e não há um limite máximo de idade”. Isso depende da avaliação que for feita. “É preciso ver se determinado casal, ou pessoa individual, tem ou não tem capacidade afetiva, se tem estabilidade, se tem condições, se não tem limitações de saúde que impeçam. É feita essa avaliação, mas em termos de limite de idade não existe, e o mínimo é os 25 anos”.
“Nunca tinha ouvido falar do apadrinhamento civil”
Joana Tinoco, psicóloga, é madrinha civil de dois irmãos. “Tenho dois afilhados, agora têm 11 e 13 anos, conheci-os com 6 e 8, e vieram viver comigo aos 8 e 10, vai fazer quatro anos este ano. Estava solteira, vivia sozinha, e a minha vida mudou para os acolher, por isso é uma aprendizagem do zero para mim também. Estamos no mesmo ponto”, conta.
Apesar de trabalhar com famílias e jovens, confessa que não conhecida esta medida. Soube através da associação Candeia, e projeto Amigos P’ra Vida. “Inscrevi-me para ser família amiga, na altura, e não sabia o que era o apadrinhamento civil, apesar de profissionalmente até já ter acompanhado crianças e jovens em risco. Estive muito ligada às comissões e aos serviços que apoiam as famílias e nunca tinha ouvido falar. Pode ser, obviamente, da minha experiência, mas ainda assim, hoje em dia falo à nossa volta e muita gente ainda não sabe que existe.”
Como madrinha civil, Joana tem hoje mais consciência da importância desta solução, e como pode fazer a diferença na vida dos afilhados. Não percebe, por isso, como é que não se fala mais desta resposta. A falta de informação pode impedir que haja mais padrinhos ou madrinhas civis, mas considera que pode também haver medo de aplicar a medida, o que condiciona a vida das crianças.
“Às vezes acho que há medo – dos técnicos, dos profissionais, a todos os níveis: medo pela responsabilidade tão grande das decisões que são tomadas. Não que as pessoas tenham muita consciência disso, mas acho que se adiam decisões, o tempo passa e quando se dá por ela, já houve uma vida num acolhimento, que não é mesmo – por todas as razões e mais algumas – um lugar para uma criança crescer. Porque pertencer a um lugar, ainda que às vezes tenha pouca qualidade ou seja menos seguro, é sentir ‘eu pertenço lá’. Não pertencer a lado nenhum pode criar um buraco muito maior”, sublinha.
A psicóloga garante que ter uma figura de referência é fundamental para as crianças, e o apadrinhamento civil assegura isso, e que se cria uma rede de apoio. “Quando há negligência afetiva, um dos fatores para que a criança desenvolva mais resiliência é a existência de pelo menos uma pessoa, uma referência, que seja consistente afetivamente, que a vá acompanhando ao longo do tempo. Haver uma pessoa e uma figura que se mantém ao longo da vida, consistentemente, pode ser um professor, um educador de ATL, um padrinho, uma madrinha, um amigo dos pais, quem seja. Não tenho dúvidas que para o desenvolvimento é fundamental ter não só esta presença, como pertencer a um lugar”.
A importância de se criarem laços e uma rede para as crianças e jovens fora do acolhimento é sublinhada também por Sofia Marques, que foi uma das fundadoras do projeto Amigos para a Vida – a que já se dedicou um dos episódios deste podcast. Quanto mais tarde isso acontece, diz, mais difícil será a passagem para a fase adulta e de autonomia. “Para que uma criança se possa autonomizar de uma forma segura e que corra bem tem de levar rede. E esta rede não se começa a criar quando se 18 anos, ou até 25. Como é que nós autonomizamos estas crianças que passaram tantos anos em acolhimento?. Estas redes e este suporte que é o essencial vai-se construindo ao longo da vida. E a experiência que temos é que muitas vezes estas famílias, sendo suporte, acabam por permitir que os miúdos saiam do acolhimento mais cedo”.
A quem queira saber mais sobre esta medida, e pondere vir a apadrinhar civilmente uma criança, Sofia Marques aconselha que se consulte o Guia disponibilizado pela Segurança Social desde janeiro deste ano, e que a surpreendeu pela positiva. “É um guia prático, com data de outubro (2024), mas publicado em janeiro (2025), com perguntas e respostas”.
Joana Tinoco deixa uma mensagem final de incentivo. “Gostava de ver uma comunidade cada vez mais sensibilizada. Nós podemos cuidar das nossas crianças, das crianças que nos rodeiam, ter esta generosidade. Um sim gera outro sim. (No apadrinhamento) Somos vários adultos a querer bem a uma mesma criança”.
O Vidas Invisíveis é um podcast Renascença em parceria com a associação Candeia, com novos episódios à quarta-feira. Disponível em todas as plataformas podcast.
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