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“É uma ferida sempre aberta”. Cinco anos depois da Covid, Paula ainda não fez o luto do sogro

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Nesse funeral, Amaro Gonçalo Ferreira Lopes, pároco da Senhora da Hora e de Guifões, presidiu à cerimónia. Foi ele quem ficou mais perto da urna.

Aconteceu várias vezes durante a pandemia: quando um carro fúnebre passou à porta da casa paroquial, no trajeto entre a capela mortuária e o cemitério da Senhora da Hora, sozinho, sem ninguém a acompanhar, mandou-o parar e fez “umas orações para aquela pessoa”; quando soube da morte de uma paroquiana que, mesmo em pandemia e sem celebrações presenciais, nunca deixou de contribuir com um euro no ofertório das missas, a que assistia ao vivo pelas redes sociais.

Quando revisita a história dos funerais que mais o marcaram, este sacerdote recorda que “o mais violento era limitar a compaixão a um olhar. E por isso é que era quase impossível não chorar”.

A crueza imposta pela Covid-19 mostrou que “não era apenas a finitude daqueles que estavam a morrer que se tornava clara, era também a nossa finitude, a morte já é o limite do limite. Nós estávamos muito perto desse limite do limite”.

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Toda a literatura sobre o luto recomenda que os rituais sejam feitos, que a morte não seja um tabu e seja vivida em todas as suas expressões. Chorar é preciso, para que a dor faça o seu caminho, para que a desolação não se instale e para que as memórias possam ajudar.


“Não era apenas a finitude daqueles que estavam a morrer que se tornava clara… era também a nossa finitude”, recorda o padre Amaro Gonçalo


Na solidão dos dias de quem perdeu entes queridos em tempo de pandemia, o padre Amaro Gonçalo recomenda “que as pessoas vejam os seus álbuns de fotografias, que falem para elas e, onde haja sepultura, que possam visitá-la”.

É a forma de trazer quem partiu para o meio daqueles que os amam. Paula gosta de o fazer.

“Muitas vezes, dizemos que os miúdos estão a fazer as mesmas coisas que o avô fazia, ou fazem manobras no futebol que ele lhes ensinou. Houve, até, uma altura em que o meu sobrinho mais velho estava a cortar a relva, não estava a conseguir, e disse ‘ó Gilberto, vê lá se me ajudas’”.

São essas memórias que devolvem a presença e ajudam a andar em frente. A conversa com Paula não se alonga. É evidente o esforço para conter as emoções.

O trauma de um luto inacabado agravou uma depressão ansiosa. Paula é professora de Geografia e está de baixa, a ver se consegue voltar às aulas.

O que a move? “A esperança e a fé”. Sem elas, diz que não teria conseguido sobreviver àquela crise.

Só lhe falta falar de tudo isto sem chorar. Mas quando? “Não sei, porque foi tudo bastante traumatizante… vivemos tudo com uma enorme intensidade e num curto espaço de tempo, sem esperar por aquele desfecho.”

No luto com trauma, o silêncio é uma defesa. O padre Amaro Gonçalo admite mesmo que algumas pessoas nunca conseguirão falar sobre estas perdas”. Também não sabe se encontrariam “ouvidos capazes”: “uma conversa sobre isto exige uma escuta ativa, uma escuta vulnerável e não é fácil encontrar ouvidores”.

Paula concorda, se bem que não se importava que algumas pessoas até falassem com ela sobre o assunto. “Mas, normalmente, prefiro que não falem.”

Ficou, no entanto, uma lição importante: “Tudo isto fez-nos ver que a vida tem limites e que temos de saber andar para a frente, sem adiar para amanhã uma experiência, um telefonema. A vida é muito curta e pode ser-nos roubada a qualquer momento”.

O luto atípico pode, também, ter manifestações criativas: “As minhas cunhadas, que nunca iam a um cemitério, agora vão várias vezes”. E o marido, que nem ligava muito a isso, “compra equipamentos do Grupo Desportivo de Chaves e fez-se sócio do clube”, para homenagear o pai transmontano.


“As pessoas só irão falar mais facilmente disto daqui por 20 anos”, acredita o psicólogo Rui Devesa Ramos


De acordo com um estudo do Instituto Ricardo Jorge, entre 22 de maio e 14 de agosto de 2020, pelo menos um terço dos inquiridos de uma observação sobre o estado da saúde mental diz ter sentido algum tipo de sofrimento psicológico. Mais de um quarto sentiu problemas como ansiedade moderada a grave, stress pós-traumático, depressão e burnout

A mesma observação conclui que os efeitos se agravaram quando as pessoas passavam por uma quarentena obrigatória. Nesses casos, 72% dos inquiridos relatam sofrimento psicológico; 56% apresentaram sintomas depressivos moderados a graves; 36% manifestaram ansiedade moderada a grave; 43% sofreram stress pós-traumático.

Em janeiro de 2022, o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto publicou os resultados de um estudo realizado entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021.

A principal conclusão foi de que 26,9% dos inquiridos apresentaram sintomas de ansiedade. E 73,3% relacionaram o agravamento dos sintomas de depressão e de ansiedade com a pandemia.

Já em fevereiro deste ano, o relatório Mental State of the World in 2024, da Global Mind Project, referia que o “impacto da pandemia na saúde mental e no bem-estar permanece sem sinais de recuperação”.

Estima-se que 63% da população mundial se sinta em estado de manutenção das necessidades básicas em termos de saúde mental e de bem-estar; 37% sentem-se a progredir e a prosperar. Mas 28% sente-se num estado permanente de angústia.

O mesmo estudo conclui que, “enquanto os adultos mais velhos estão bem, cerca de metade dos adultos mais jovens está a passar por dificuldades ou angústias funcionalmente debilitantes”.

Na faixa etária dos 18 aos 34 anos, há mais 25% de tendência para novos sintomas psicológicos, como “pensamentos indesejados, estranhos e obsessivos, bem como uma sensação de distanciamento da realidade”.

Sintomatologia que, de acordo com os especialistas, é agravada pela desconexão social, pelos smartphones, pela comida ultra processada e pela exposição a químicos.


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