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Daniel Ferro: Retenção de Médicos no SNS: Desafios e Estratégias

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Daniel Ferro, Administrador Hospitalar na USF S. José, apresentou um estudo inovador sobre a retenção de profissionais médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante o 10º Congresso Internacional dos Hospitais, uma iniciativa da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar (APDH).

Ferro iniciou a sua apresentação destacando a importância do estudo, e que era a primeira vez que os resultados obtidos eram divulgados publicamente. O orador explicou que a pesquisa faz parte de um projeto mais amplo, com duração prevista entre três a quatro anos, e que os dados apresentados correspondem à primeira fase do estudo.

O investigador esclareceu que a investigação tem dois objetivos principais. O primeiro, de caráter pessoal e que visa concluir o seu percurso académico, interrompido anteriormente por razões profissionais. O segundo objetivo, de natureza operacional, pretende deixar um legado ao SNS, abordando um aspeto crucial do sistema de saúde português que, segundo Ferro, não tem sido suficientemente debatido nem estudado.

Antes de entrar nos detalhes do estudo, Ferro contextualizou a situação atual do SNS. Apesar de reconhecer a qualidade geral do serviço de saúde português, o orador apontou alguns sintomas preocupantes que indicam que o sistema enfrenta desafios significativos. Entre estes, destacou o crescimento das listas de espera, um problema que persiste há vários anos, e os recentes e frequentes constrangimentos e encerramentos dos serviços de urgência públicos.

Ferro explicou que vários fatores contribuem para o aumento da procura de cuidados de saúde, incluindo o envelhecimento da população e o aumento das doenças crónicas. Paralelamente, o sistema enfrenta uma escassez de profissionais e problemas de organização e gestão.

Analisando os recursos humanos do SNS, Ferro apresentou dados que mostram um aparente aumento de profissionais nos últimos anos. Citando um estudo recente, o orador indicou que houve um acréscimo anual de 2,6% no número de enfermeiros e de 3,2% nos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica. No setor médico, registou-se um crescimento de 1% ao ano.

No entanto, Ferro alertou que este aumento é nominal e não se traduz necessariamente num aumento efetivo da força de trabalho. Considerando as alterações de estatuto ocorridas nos últimos anos, o crescimento de 11% no número de médicos hospitalares é praticamente absorvido, o que significa que, na prática, o SNS está a operar com recursos médicos semelhantes aos de há uma década.

O investigador também chamou a atenção para as assimetrias regionais na distribuição de recursos médicos. A região de Lisboa, por exemplo, tem entre 20% a 30% menos recursos do que outras regiões do país. Além disso, o envelhecimento dos profissionais é uma preocupação crescente, com o grupo de médicos com mais de 65 anos a passar de 6% para 12% em apenas uma década.

Ferro apresentou dados alarmantes sobre a situação na região de Lisboa, onde um em cada quatro médicos tem mais de 55 anos. Esta realidade coloca desafios significativos para a sustentabilidade e eficácia do sistema de saúde a médio e longo prazo.

O objetivo principal da investigação conduzida por Ferro foi compreender o fenómeno do turnover e identificar estratégias para melhorar a retenção de profissionais no SNS. Para isso, o estudo procurou identificar as causas de saída dos médicos e as oportunidades de melhoria no papel das lideranças intermédias, que têm uma relação mais direta com os recursos humanos.

O estudo de Ferro é ambicioso e vai além da mera identificação de problemas. Propõe-se estabelecer um modelo orientado para a retenção de profissionais e a formular um conjunto de recomendações práticas para implementação.

Com base na investigação realizada, Ferro identificou cinco conceitos-chave que melhor explicam o turnover e a intenção de saída dos profissionais médicos do SNS:

  • Compromisso organizacional na dimensão afetiva: Este conceito refere-se à existência ou não de uma forte relação emocional entre o colaborador e a organização.
  • Motivação intrínseca: Um conceito frequentemente mencionado, mas que carece de uma definição precisa para se compreender o que realmente está por trás dele.
  • Motivação extrínseca: Relacionada com recompensas, existe evidência de que pode ser um motivador da motivação intrínseca, mas maioritariamente reforça a motivação extrínseca.
  • Liderança: Diversos estudos apontam que o estilo de liderança que mais preserva, promove e defende um baixo turnover é a liderança transformacional.
  • Práticas de recursos humanos: Certas práticas podem reforçar as políticas de retenção de profissionais.

Ferro explicou que optou por um estudo qualitativo, argumentando que uma simples pergunta sobre o motivo da saída do SNS, seguida de uma resposta padrão como “recebi uma proposta mais vantajosa”, seria insuficiente para compreender a complexidade do fenómeno. O estudo procurou, portanto, conhecer a “parte submersa do iceberg” ou, como alguns autores descrevem, “entrar na caixa negra dos profissionais” para entender exatamente o que está associado à decisão de deixar o SNS.

A amostra do estudo foi constituída por três hospitais de diferentes tipologias: um grande (Lisboa Central), um médio (Fernando da Fonseca) e um pequeno (Barreiro Montijo). Ferro aproveitou para agradecer publicamente a participação destes hospitais, sem a qual não teria sido possível chegar aos resultados apresentados.

O estudo focou-se nos médicos que saíram com idade igual ou inferior a 50 anos, considerando que a perda de um profissional nesta faixa etária representa uma perda mais significativa para o SNS do que a saída de alguém próximo da idade de reforma. Além dos médicos que saíram, foram também entrevistadas as lideranças dos serviços onde ocorreram estas saídas. No total, o estudo envolveu 41 profissionais.

Ferro apresentou dados sobre a evolução dos recursos médicos nos hospitais estudados. Com exceção de um dos hospitais, onde o número de médicos se manteve estável, nos outros dois houve um acréscimo nominal de recursos. No entanto, o investigador reiterou que este crescimento nominal não se traduz necessariamente num aumento efetivo da força de trabalho devido às alterações de estatuto e outras variáveis.

O estudo identificou oito especialidades médicas que, no balanço dos últimos cinco anos, perderam um total de 54 profissionais. No entanto, ao considerar apenas os médicos com menos de 50 anos, este número sobe para 71 profissionais. Foi sobre este grupo de 71 médicos que o estudo se debruçou, conseguindo entrevistar 40 deles.

Ferro explicou a metodologia utilizada para analisar os dados recolhidos. Numa primeira fase, foram selecionadas as informações relevantes, utilizando as próprias palavras e conceitos dos entrevistados. Esta abordagem resultou numa base de dados com cerca de 400 frases relevantes de médicos e lideranças. Num segundo momento, com base na experiência dos investigadores e no conhecimento científico da área, estas informações foram agrupadas em 50 conceitos recorrentes. Por fim, num terceiro momento, estes conceitos foram organizados em sete dimensões principais.

O investigador apresentou alguns dos resultados mais significativos do estudo. Na dimensão das condições remuneratórias, 17 dos 28 médicos entrevistados (cerca de 60%) referiram que as condições económicas tiveram peso na decisão de saída. No entanto, Ferro sublinhou que esta não foi a única causa, estando associada a outros fatores.

Uma das dimensões mais complexas e interessantes do estudo relaciona-se com as necessidades psicológicas básicas dos profissionais médicos. Ferro explicou que, tal como existem necessidades biológicas básicas (como alimentação e água), também existem necessidades psicológicas fundamentais. No caso dos médicos, foram identificadas três necessidades psicológicas básicas: autonomia, competência e relacionamento.

Estas necessidades estão intimamente ligadas à cultura do grupo médico, que valoriza principalmente três aspetos: ter uma área de interesse, ter condições para se diferenciar e desenvolver, e ter um ambiente de bom relacionamento e trabalho.

Analisando cada uma destas necessidades, Ferro apresentou os seguintes resultados:

Autonomia: 6 em 28 médicos referiram não ter uma área de interesse, não ter a área de interesse que desejavam, ou não ter condições para desenvolver a sua área de interesse.

Competência: 15 em 28 médicos mencionaram insuficiência ou insatisfação quanto à possibilidade de se diferenciarem e desenvolverem na sua área de interesse.

Relacionamento: 9 em 28 médicos indicaram insuficiência ou insatisfação relativamente ao relacionamento e ao ambiente de trabalho.

Outra dimensão crucial analisada no estudo foram as condições de trabalho. Neste aspeto, o peso é praticamente idêntico às necessidades psicológicas básicas: 22 em 28 médicos referiram insatisfação com as condições de trabalho. Ferro destacou que as causas mais frequentemente mencionadas foram o excesso de trabalho de urgência e o excesso de carga de trabalho em geral.

Na dimensão de valores e interesses, também houve um número significativo de médicos (12 em 28) que mencionou insuficiência ou insatisfação. As principais causas apontadas foram a dificuldade em harmonizar os horários com a vida pessoal e a dificuldade de acumulação de funções.

Sintetizando os resultados nas cinco principais dimensões analisadas, Ferro concluiu que a insatisfação ou insuficiência quanto às necessidades psicológicas básicas e às condições de trabalho são as causas predominantes que levam os médicos a tomar a decisão de sair do SNS. No entanto, existem ainda outras causas associadas, relacionadas com a liderança, as condições remuneratórias e os valores e interesses pessoais.

Ferro sublinhou que esta visão, pelo menos nas causas mais representativas, é confirmada pelas lideranças entrevistadas, que reconhecem estes fatores como determinantes para a saída dos profissionais do SNS.

Com base nestes resultados, Ferro propôs várias áreas de atuação para melhorar a retenção de profissionais médicos no SNS:

Garantir um perfil de liderança transformacional nas chefias. Isto implica não só escolher líderes com este perfil quando possível, mas também formar e desenvolver as competências de liderança transformacional nos atuais líderes.

Aperfeiçoar os critérios de recrutamento, dando preferência a candidatos com uma vocação principalmente intrínseca, em vez daqueles com uma motivação essencialmente extrínseca.

Melhorar a estruturação do período de socialização dos novos médicos. Ferro destacou que 70% dos médicos fizeram formação nas instituições onde foram contratados, o que representa uma oportunidade significativa para harmonizar áreas de interesse e garantir a compatibilidade de valores entre o profissional e a instituição.

Reforçar certas práticas de recursos humanos, como melhorar o apoio à formação e à diferenciação profissional. Ferro mencionou que, atualmente, grande parte deste esforço é suportado pelos próprios médicos, com pouco apoio institucional.

Desenvolver melhores planos de promoção na carreira. O investigador alertou que a falta de promoções ao longo de 10 ou 15 anos pode ser um fator decisivo quando um profissional recebe uma proposta externa.

Desmistificar a questão da avaliação de desempenho. Ferro sugeriu que é necessário um alinhamento entre os órgãos de gestão, médicos e lideranças quanto aos objetivos da avaliação. Esta não deve focar-se apenas em métricas quantitativas (como número de consultas ou exames realizados), mas deve integrar aspetos relacionados com a competência, o relacionamento e a diferenciação profissional.

Dar mais atenção ao ambiente de trabalho. Embora esta questão tenha sido pouco valorizada pelas lideranças, foi muito mencionada pelos médicos. Ferro enfatizou a importância de garantir um ambiente saudável e com bom relacionamento, pois isto corresponde a uma necessidade básica dos profissionais.

Ferro argumentou que, satisfeitos estes requisitos, será possível ter profissionais que se identifiquem mais com a instituição e com o serviço. Isto, por sua vez, criará melhores condições para reforçar a motivação intrínseca, levando a um maior compromisso afetivo e ligação emocional com o SNS. Como resultado, o desempenho poderá melhorar e os níveis de satisfação profissional aumentar.

O investigador concluiu a sua apresentação sublinhando que estas recomendações servirão como requisitos para a segunda fase do estudo. Esta fase focar-se-á na aplicação prática do modelo desenvolvido e no seu ajuste com base nos resultados intercalares obtidos.

Ferro encerrou a sua intervenção expressando a sua esperança de que este estudo possa contribuir significativamente para a melhoria da retenção de profissionais médicos no SNS, fortalecendo assim o sistema de saúde português como um todo.

A apresentação de Daniel Ferro no 10º Congresso Internacional dos Hospitais representa um passo importante na compreensão dos desafios enfrentados pelo SNS no que diz respeito à retenção de profissionais médicos. O estudo apresentado não só identifica as principais causas de saída dos médicos, mas também propõe estratégias concretas para melhorar a situação.

A abordagem multidimensional adotada por Ferro, que considera fatores como motivação intrínseca e extrínseca, liderança, condições de trabalho e necessidades psicológicas básicas, oferece uma visão holística do problema. Esta perspetiva abrangente é fundamental para desenvolver soluções eficazes e sustentáveis.

As recomendações apresentadas por Ferro, desde a promoção de uma liderança transformacional até à melhoria das condições de trabalho e desenvolvimento profissional, fornecem um roteiro valioso para os decisores políticos

 

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