Quem aceita andar nu?
Todos os dias alguém acorda, veste-se, caminha, anda, e segue a sua vida, até ao dia em que algo de diferente lhe bate à porta e diz: “cheguei”.
Com surpresa ou espanto, a pessoa fica despojada do seu dia, da sua rotina que era suposto começar às 9h no trabalho, já não podendo começar. Sucedem-se contactos, telefonemas, a tentativa de compreender o que se passa, passou e como é ou foi.
Até lá, a vida pautou-se todos os dias, por anos e anos, de levantar cedo, trabalhar em duplos, triplos, quádruplos e se possível, não sendo suficiente, as mil e uma funções, cargos ou afins… cuidar da casa, do jantar… e ter tantas tarefas e afazeres que tão embrenhados nas múltiplas tarefas, nem se percebe nem se sabe a que dia se anda.
E, no momento em que a vida obriga a parar, no final de contas há quem se depare com uma simples questão: o que fiz em vida? O que é que deixo nesta vida? O que é que levo?
Parou naquele instante a vida e a pessoa percebeu que não estava, não via, não existia há muito. Anos e anos a trabalhar dia e noite para pagar uma casa, que só estaria paga aos 70 anos, e a trabalhar para ela, a tentar todos os dias trazer dinheiro em géneros alimentares para uma mesa ou depois a juntar dinheiro para mais um pertence. Não se lembra do beijinho simples repenicado, nem o último abraço aos que ama… ou mesmo o simples verbo: amor- conjugado, pois quando se juntam, se e quando houver tempo, o cansaço acomete, ou então já todos estão deitados a dormir e só haverá- ou não- o fim de semana que “passa a correr”. Mesmo porque até os filhos andam em mil e uma atividades extra curriculares.
Viver em amor pela vida é dos únicos estados onde não cabe a busca incessante pela felicidade e a necessidade de ter mais e mais. Só há amor. Ponto. Este amor? Não é um amor qualquer. É o amor que fora de emoções, livre de intenções ou de uma espera de troca contínua, se descontinua no seu espaço tempo e gera um novo movimento para ser continuado. É o que preenche e não o que se envolve no conforto da carência e na vulnerabilidade do ser.
E aquela persona diária que se veste a cada instante, com cada pessoa, em cada cenário, passa a ser um despropósito. Há a palavra “socorro” aliada à devolução de uma vida que se pensa ter adquirido sem se perceber que pode findar na forma como a conhecemos.
É a vida a lembrar da sua intenção e vulnerabilidade.
Afinal, o que é que andas aqui a fazer? A passear o teu fato, a passear as tuas sapatilhas, a mostrares-te como turista de espírito? A passear o teu esqueleto?
Em que é que dedicas o teu tempo e dinheiro?
Qual foi a última vez que te despiste e andaste nu?
A quantas pessoas e com quais, podes mesmo andar nu num como sem porquê e num porquê sem como? Numa descoberta incessante pelas diversas formas e múltiplas de compreensão da vida? Qual foi a última pessoa com que partilhaste a tua forma e te desnudaste: do pudor do teu verdadeiro eu em liberdade?
A liberdade e responsabilidade que transportamos como pessoas, e na profissão como enfermeiros, nos leva a dimensões que ultrapassam a carne humana e que nos transcendem. Nem todos compreenderão, alguns só de facto instantes antes da morte, quando se acomete o sofrimento e se exprimem elevando as mãos ao ar como forma, ou não, de amenizarem o que fizeram ao longo da vida: como um filme que lhes acerca os olhos e os alerta para numa próxima perceberem melhor o que poderiam ter ou não feito neste mundo.
O que sobra nesse instante? Consciência. A consciência que se foi adquirindo. De resto, todos se despedem do corpo de carne, nus.
Não ponho autores aqui, nem bibliografias pois sois os autores da vossa própria vida. E ainda que todos precisemos de ajuda inicial para compreensão e haja informação infinita, intelectual, é no vosso livro interior- no de cada um- na sua essência, que tudo se faz e é ele que deverá ser lido e é dele que devem arrancar a vossa escrita e reflexão. Não é com e para todos, nem com todos. Com alguns apenas, raros seres que se permitem ousar questionar e ser.
E hoje, anos depois, venho apenas e somente dizer-vos isto: qual foi a última vez que tiveram coragem de ter um diálogo nu e de se despirem perante a peça de teatro da vida? Deixar de colaborar no jogo e de se revelarem como são, tal como são?