Revisão do preço na hemodiálise para manter “altos níveis de qualidade”
O estudo de Eduardo Costa, financiado pela ANADIAL, faz referência à necessidade de um modelo dinâmico de preço compreensivo para garantir a excelência dos cuidados de hemodiálise. Como funcionaria este modelo e quais as benefícios para os doentes?
O estudo intitulado “Preço compreensivo da hemodiálise em Portugal” faz uma análise retrospetiva do preço compreensivo desde a sua introdução em 2008, tendo por base a evolução da despesa da Saúde Pública no mesmo período, a evolução dos custos dos prestadores, e por último, compara-o com modelos de remuneração da diálise em diferentes países. É com base nestes dados que surge a recomendação de alteração do atual modelo assente em quatro princípios:
- À semelhança de outros países europeus, implementar um modelo dinâmico de atualização do preço compreensivo, o que significa que anualmente o valor de remuneração é revisto com base na evolução de variáveis económicas que são externas aos prestadores, como seja a inflação ou a evolução do salário mínimo nacional;
- Alargar o princípio do preço compreensivo para fases pré e pós-diálise, possibilitando assim que as pessoas com doença renal crónica possam ser acompanhadas mais perto de sua casa e num contexto multidisciplinar (que inclui farmacêutico, nutricionista e assistente social, adicionalmente ao nefrologista e ao enfermeiro). Estamos a falar de consultas de acompanhamento numa fase inicial da doença para atrasar a entrada em diálise e de consultas de acompanhamento de transplantes e prestação de cuidados paliativos e do tratamento conservador, caso o doente assim o exija.
- Porque nem todos os doentes são iguais, é também feita a recomendação de flexibilizar os modelos para acomodar diferentes opções terapêuticas dos doentes, ou seja, permitir que os mais complexos tenham um valor mais elevado. Este ponto é crucial para incorporar as evoluções terapêuticas e com isso assegurar a todo o momento o melhor tratamento para cada um.
- Por último, para nos mantermos fiéis aos princípios que levaram à criação do preço compreensivo e que passa, entre outros fatores, por assegurar a máxima qualidade ao menor preço para o SNS, é feita a recomendação de rever os indicadores de desempenho de modo a medir o valor gerado para os doentes, tornando-os mais alinhados com a realidade atual.
Estas quatro recomendações irão permitir que o tratamento de hemodiálise em Portugal se mantenha nos mais altos níveis de qualidade mundial, que os doentes possam ser acompanhados de uma forma mais próxima ao longo da doença renal crónica e com acesso às inovações terapêuticas, que o SNS mantenha o custo da hemodiálise controlado e com criação de valor para o sistema e, por último, assegurar a sustentabilidade da operação para os prestadores.
De que forma este modelo poderá melhorar a qualidade de vida dos doentes e a eficiência na prestação de cuidados?
Este novo modelo atuará em diferentes dimensões da qualidade de vida e de tratamento dos doentes. Ao ser alargado para as fases de pré e pós-diálise, irá permitir que todas as pessoas com doença renal crónica sejam acompanhadas mais perto da sua residência, evitando assim a deslocação periódica aos hospitais distritais, onde atualmente estes tratamentos são feitos. Isso permitirá menores deslocações e uma maior adesão aos tratamentos. Adicionalmente, as clínicas de diálise podem assegurar um acompanhamento multidisciplinar (que inclui farmacêutico, nutricionista e assistente social, adicionalmente ao nefrologista e ao enfermeiro) que trabalha diretamente sobre a qualidade do cuidado e do doente, colocando-o no centro do tratamento. Por último, e especialmente para o caso do tratamento conservador e cuidados paliativos, permitirá o acesso a um conjunto de cuidados que neste momento estão limitados por falta de profissionais e/ou infraestruturas.
Desde a introdução do preço compreensivo em 2008, quais foram os principais impactos observados na prestação de cuidados de hemodiálise em Portugal?
O estudo realizado pelo Prof. Eduardo Costa, mostra que a introdução do preço compreensivo (e o modelo holístico de tratamento que lhe está inerente) teve dois principais impactos: redução da mortalidade de 9% e 8% para os doentes em hemodiálise e diálise peritoneal, respetivamente, sendo que estes resultados são alcançados apesar do envelhecimento dos doentes (aumento da idade média em 2% e 9%, para a hemodiálise e diálise peritoneal, respetivamente). O segundo impacto é a eficiência que trouxe ao sistema e que é observada pela redução do custo inerente ao tratamento de 7% entre 2009 e 2017. Esta eficiência foi conseguida por vários fatores, desde a maior capacidade de negociação na aquisição de medicamentos, mas também por uma utilização mais eficiente dos recursos humanos e técnicos. A partir de 2017 as possibilidades de eficiência foram cada vez mais diminutas, e dada a manutenção do preço compreensivo, houve apenas uma degradação da margem dos prestadores.
De notar que durante este período, e apesar de não haver uma alteração do preço compreensivo, os centros de diálise privados introduziram um conjunto de inovações, com impacto na qualidade de vida e de cuidados dos doentes, nomeadamente a hemodiálise noturna, que permite que as pessoas que ainda estejam em vida ativa consigam compatibilizar a vida profissional com os cuidados, e o tratamento HDF (hemofiltração de alto fluxo) que está provado cientificamente que tem um impacto relevante na qualidade de cuidados.
Qual o aumento do número de doentes em tratamento em clínicas privadas?
O número de doentes a realizar hemodiálise em Portugal é de 13.759 no final de 2022. Destes, mais de 90% realizam tratamentos em centros de diálise privados. Face a 2008, representa um aumento médio de cerca de 3% ao ano.
De acordo com o vosso comunicado, houve uma redução de 30% na margem dos prestadores devido à redução do preço compreensivo entre 2008 e 2011. Quais as consequências? Como é que as clínicas estão a lidar com esta redução?
É importante realçar que o preço compreensivo foi introduzido em 2008, teve duas reduções que totalizaram cerca de 18% até 2011, apesar da introdução de serviços adicionais que equivaliam a 4% do valor, e desde então não há atualizações. Apesar de, numa primeira fase, os privados terem conseguido trazer eficiências ao sistema e com isso conseguir acomodar parte da quebra da margem, o estudo “Preço compreensivo da hemodiálise em Portugal” mostra que, após 2017, há uma degradação constante da margem, acentuada nos últimos 3 anos com o aumento da inflação, aumento dos custos inerentes à covid-19 e ainda com a dificuldade de fornecimento de medicamentos em Portugal.
Neste contexto, as clínicas de menor dimensão são as mais afetadas, já que são as que têm menor hipótese de gerir mais eficientemente os custos, fazendo com que tenham de recorrer a diferentes estratégias para manter a qualidade dos custos. O estudo evidencia que uma área que acabou por ser afetada é a remuneração dos recursos humanos, nomeadamente dos médicos que têm tido uma progressão abaixo da inflação. Cada ano em que esta situação se prolonga, mais dificilmente será possível manter o equilíbrio financeiro e podemos ter de fechar unidades, o que não beneficia em nada os doentes e os profissionais.
O modelo de gestão integrada da doença renal crónica proposto sugere expandir o preço compreensivo para fases pré e pós-diálise. De que forma isso pode contribuir para o diagnóstico precoce e o tratamento mais eficaz?
Vários estudos a nível mundial mostram que a incidência da doença renal crónica é muito superior ao que conhecemos, sendo que esse desconhecimento deve-se à ausência de sintomas numa primeira fase e por isso não surge a necessidade de diagnóstico. Também está provado que, por um lado, quanto mais cedo for iniciado o acompanhamento da pessoa com doença renal crónica, maior a qualidade e longevidade de vida, já que há um adiamento na entrada em diálise e, simultaneamente, evita-se a mortalidade que é mais incidente na fase intermédia da doença. Adicionalmente, um acompanhamento feito de forma mais próxima da residência e por uma equipa multidisciplinar permite uma maior adesão ao tratamento e, com isso uma maior eficácia e eficiência (menores custos) para o sistema.
No caso da pós-diálise, vamos estar a atuar sobre dimensões distintas. A nossa proposta é alargar o acompanhamento do doente para o tratamento conservador e cuidados paliativos. O tratamento conservador é bastante incipiente em Portugal por só ser possível realizar nos hospitais públicos. Consiste na possibilidade do doente optar por não entrar em diálise (embora esta seja a opção terapêutica mais aconselhada), assegurando-se o tratamento dos sintomas físicos da doença renal crónica e das doenças associadas. Por sua vez, os cuidados paliativos permitem assegurar um maior conforto numa fase final de vida. Em ambas as situações, a realização destes tratamentos numa clínica, aproxima os cuidados do doente e com isso aumenta a possibilidade de um maior número de pessoas poder exercer as suas escolhas e terem maior qualidade de vida.
Quais são os benefícios adicionais que a ANADIAL espera ver com a implementação deste modelo de gestão integrada?
Caso as diferentes recomendações preconizadas pelo estudo sejam implementadas, todos os intervenientes vão ficar a ganhar: as pessoas com doença renal crónica passarão a ser acompanhadas de forma mais próxima ao longo da doença, alargando ao pré e pós-diálise, com acessos às inovações terapêuticas, assegurando os atuais altos níveis de qualidade do tratamento, o SNS manterá o custo da hemodiálise controlado e com criação de valor para o sistema e, por último, os prestadores conseguirão assegurar a sustentabilidade da operação.
De que forma a falta de flexibilidade do atual modelo de pagamento do SNS aos centros privados afeta diretamente a qualidade dos cuidados oferecidos aos doentes renais crónicos?
De uma forma simplista, diria que afeta em duas dimensões: qualidade e acessibilidade. Atualmente os doentes em hemodiálise usufruem de uma quantidade de inovações (p.ex. hemodiálise noturna e hemofiltração de alto fluxo) que não são remuneradas pelo Estado e que não estão incluídas no preço compreensivo e que representam custos adicionais relevantes para os prestadores. A manter-se o atual preço, os prestadores poderão ser obrigados a deixar cair estas inovações, o que afeta diretamente a qualidade de vida e de cuidados dos doentes. Também poderíamos discutir nesta dimensão a dificuldade crescente da introdução de terapêuticas inovadoras, que cada vez mais é desafiante incorporar.
Uma das principais vantagens dos centros de diálise privados é a proximidade do cuidado à residência do doente, permitindo com isso uma maior acessibilidade de cuidados (por um lado há uma desmultiplicação de recursos e por outro uma maior facilidade de deslocação), o que aumenta a possibilidade de acesso a tratamento (e escolha deste) e com isso uma maior adesão ao mesmo, com resultados provados em termos de qualidade de vida e de tratamento. Pretendemos com isto aumentar a percentagem de doentes que tem acesso ao tratamento conservador e aos cuidados paliativos e ainda aumentar a quantidade de pessoas com doença renal crónica que terão acompanhamento clínico de qualidade e com isso reduzir a taxa de mortalidade.
Considerando as conclusões do estudo, quais as principais recomendações da ANADIAL para o Governo em relação à gestão da doença renal crónica?
Como compreenderão, estamos de acordo com o caminho apontado pelo Prof. Eduardo Costa no que se refere à revisão dos termos do Preço Compreensivo, à fórmula proposta para a sua atualização rotineira, com base em variáveis externas e alheias aos prestadores, mas que em muito impactam e penalizam a sua atividade.
Pretendemos que este estudo nos permita encetar um diálogo sério e efetivo com o Governo para que seja fixada uma política clara e os objetivos para a doença renal crónica nos próximos 10 anos.
Hoje é Dia Mundial do Rim, a ANADIAL está a promover alguma atividade nesse âmbito?
Sim, a ANADIAL associa-se à Sociedade Portuguesa de Nefrologia para assinalar o dia, colocando o doente e a doença na ordem do dia, prosseguindo com o seu trabalho na área da prevenção, partilhando as suas experiências, procurando envolver a comunidade médica, os doentes e a opinião pública.
Sílvia Malheiro
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