
Transparência e Independência, uma Ordem para o futuro
Mário André Macedo: Enfermeiro Especialista em Saúde Infantil e Pediátrica
A história da alteração da lei das ordens profissionais remonta aos tempos do memorando de entendimento assinado com a Troika, que já previa a “eliminação dos requisitos ao acesso e exercício de profissões regulamentadas que não se mostrem justificados ou proporcionais”, assim como “medidas para liberalizar o acesso e exercício das profissões regulamentadas por profissionais qualificados e estabelecidos na União Europeia”. Além destas medidas, estava igualmente assumido o objetivo final de “rever e reduzir o número de profissões reguladas”.
A ideia de que as Ordens são um entrave ao desenvolvimento económico está enraizada no pensamento neoliberal europeu. Assim se explica que o tema volte à baila sob o atual Plano de Recuperação e Resiliência. Na sua componente 6, “qualificações e competências”, está prevista a redução das restrições nas profissões altamente reguladas. A adoção desta medida condiciona a libertação de verbas do PRR.
Acontece que as profissões reguladas são muito diferentes. Não é o mercado que garante ao cidadão que determinado médico é competente, ou que regula e melhora a prática dos enfermeiros. A saúde é uma área onde é mesmo essencial existir regulação, incentivos ao desenvolvimento profissional e uma relação de confiança com o cidadão. É preciso uma Ordem forte e independente, que ofereça garantias de qualidade e melhoria contínua dos cuidados prestados à sociedade. O contrato social entre a profissão e o cidadão pode ser revisto e melhorado, mas não deve ser apagado!
Acho muito razoável a proposta de obrigar os bastonários à entrega de uma declaração de rendimentos. Embora seja preciso relembrar, que o combate à corrupção e à utilização indevida de fundos públicos, não se deve esgotar nos formalismos da lei.
Também defendo uma maior transparência e abertura das Ordens à sociedade. O problema encontra-se nos detalhes. Na enfermagem, praticamente todos os professores estão inscritos na Ordem, pois acompanham os estudantes em estágio, sendo irrealista pensar que é possível ter um Conselho de Supervisão com 40% dos seus membros recrutados entre professores não inscritos na Ordem. O resultado seria que, não havendo disponibilidade de professores não-inscritos para compor listas concorrentes a um tal Conselho de Supervisão, a democracia interna na enfermagem morreria, pois nunca mais haveria mais que uma lista a concorrer.
A ideia de um provedor do cidadão não é nova. Infelizmente, nunca foi implementada. Prestando a Ordem um serviço público essencial, é correto que o cidadão tenha alguém a quem recorrer quando os processos demoram ou quando não concorda com uma decisão. Mas mais uma vez, é nos detalhes que encontramos problemas. Que sentido faz que uma figura não eleita pelos profissionais tenha o poder de vetar decisões do conselho diretivo eleito pelos profissionais? Esta proposta é descabida e profundamente antidemocrática.
Também devemos recusar a prática de profissionais não inscritos na Ordem. Se há problemas de celeridade na homologação dos processos de profissionais estrangeiros, a solução não é destruir a regulação, mas sim a melhoria dos processos. Em situações de emergência, como pandemias ou catástrofes, o governo já tem o poder de autorizar temporariamente a prática a profissionais estrangeiros. Fica por explicar qual a necessidade de abrir a porta à prática não regulamentada.
Para quem defende a importância do serviço público e reconhece a importância que a saúde tem para a consecução dos projetos de vida das pessoas, a democracia não pode ficar à porta dos serviços e instituições de Saúde. São necessárias estruturas sindicais plurais, autónomas e representativas que assegurem a defesa dos interesses da classe da enfermagem e, naturalmente, ordens profissionais fortes, independentes e transparentes, que articulem a defesa do estatuto da profissão, do seu exercício qualificado e do seu prestígio. É possível conjugar transparência e independência. Errará quem pensar que tem de optar por uma em detrimento de outra.
Só teremos os cidadãos ao lado dos enfermeiros se aceitarmos propostas que tenham como objetivo o reforço da transparência, da democracia e do serviço prestado. A defesa da cooperação entre todos os profissionais de saúde, baseada num paradigma não corporativo da prestação de cuidados, não diminui a importância da defesa pela Ordem do papel fundamental que os enfermeiros têm na sustentabilidade do ecossistema de saúde e do reconhecimento de todas as responsabilidades que informalmente já nos são atribuídas. Assim, este processo pode ser resumido em duas palavras: oportunidade perdida. Podia ter-se centrado a discussão no reforço do papel das enfermeiras e enfermeiros, reconhecendo o nosso papel como determinantes do acesso a cuidados de saúde de qualidade e construindo uma arquitetura de saúde mais sustentável. Infelizmente, a opção foi outra.